21 de abr. de 2015

"Todo o poder emana de Deus". A concepção católica de poder e a proposta do deputado Daciolo

A notícia é velha: um deputado do PSOL (sic) apresentou uma PEC que altera o texto da Constituição onde diz que o poder emana do povo. O deputado, evangélico, propõe que o novo texto declare que o poder emana de Deus. Que todo poder emana de Deus, independentemente da forma de governo, não há dúvida. O problema reside na conveniência da alteração. O projeto, evidentemente, não prosperará, mas, de qualquer forma, começou-se o mimimi vendo nisso um ataque ao Estado laico. Os chorões pouco sabem que um conceito tão simples, condensado em tão poucas palavras, livrou a humanidade e, particularmente, salvaguardou a civilização ocidental, por vários séculos, da tirania, do absolutismo ilimitado e do totalitarismo.

Podem objetar: Aprende-se na escola que existiram governos monárquicos absolutistas a partir do século XVI. Mais ou menos. Evoco, aqui, as palavras do historiador marxista Perry Anderson, contidas na sua obra As Linhagens do Estado Absolutista:

"Na verdade, o próprio termo "absolutismo" era uma denominação imprópria. Nenhuma monarquia ocidental gozara jamais de poder absoluto sobre seus súditos, no sentido de um despotismo sem entraves. Todas elas eram limitadas, mesmo no máximo de suas prerrogativas, pelo complexo de concepções denominado direito "divino" ou "natural"[...] Nenhum Estado absolutista poderia jamais dispor livremente da liberdade ou da propriedade fundiária da própria nobreza, ou da burguesia, à maneira das tiranias asiáticas suas contemporâneas. [...] Desse modo, a monarquia absoluta no Ocidente foi sempre, na verdade, duplamente limitada: pela persistência, abaixo dela, de corpos políticos tradicionais, e pela presença, sobre ela, de um direito moral abrangente."

Limitadas pelo direito divino ou natural e por um direito moral abrangente. O que seria esse limite, na Europa do Ancien Régime, senão a moral cristã? Os monarcas sabiam que seus poderes não provinham da linhagem sanguínea ou de processos eletivos. Vinha do alto. Aquelas palavras de Jesus a Pilatos ressoavam entre os poderosos deste mundo: "Não terias nenhum poder sobre mim, se não te fosse dado do Alto". Mesmo entre pagãos, o poder emana de Deus, fonte e origem de toda autoridade.

Outra objeção: este conceito levou à formulação do Direito Divino dos reis e, subsequentemente, a um poder ilimitado, já que o monarca não precisa prestar conta a ninguém, tendo apenas Deus por superior. Errado. A tese do Direito Divino dos reis surgiu e prosperou entre os protestantes para legitimar seus cesaropapismos contra o Papa e não a favor de poderes ilimitados. Mesmo Jean Bodin (1530-1596), primeiro teórico do direito divino dos reis, diz que nenhuma lei está acima das leis naturais e divinas. A arbitrariedade, se existe, é um abuso de poder, não a forma ordinária de governo.

Afirmar que todo poder emana de Deus não contradiz a democracia. Já o teólogo Francisco Suárez (1548-1617), em duas obras (De Legibus e Defensio Fidei) apresenta a doutrina católica "que pode resumir-se deste modo: sempre que se forma uma sociedade civil surge nela o poder político como sua propriedade natural. O poder político não é recebido imediatamente de Deus para os governantes, mas só mediatamente por intermédio da sociedade organizada. Na instituição dos governantes das sociedades, no "pacto de sujeição" tal como o entende Suárez, é a própria sociedade que designa o titular do poder e lhe confere autoridade."

Suárez afirma que "a comunidade política é libre por direito natural e não está sujeita a nenhum homem fora dela, senão que ela mesma em sua totalidade tem o poder político que é democrático enquanto não se mude."

Para Suárez, independentemente da forma de governo, o poder do governante tem origem imediatamente na comunidade e mediatamente em Deus. "O poder de dominar ou reger politicamente aos homens, a nenhum homem em particular lhe foi dado imediatamente por Deus (III, 2, 3. 5) este poder só em virtude do direito natural está na comunidade dos homens (III, 2, 4. 1), está nos homens e não em cada um ou num determinado" (Defensio Fidei).

Concluindo, podemos observar que as formas de governos provindas do Iluminismo - ou antes, de Maquiavel (1469-1527) - e postas em prática a partir da Revolução Francesa com o total esvaziamento religioso e de qualquer corpo de doutrina moral levou a civilização ocidental a experimentos governamentais desastrosos como o nazismo, o comunismo e toda forma de ditaduras e tiranias que cometeram os maiores crimes que a humanidade jamais viu. Porém, tais defeitos não são exclusivos de governos antidemocráticos. Afirmar radicalmente que todo poder emana do povo, sem levar em consideração qualquer lei moral que esteja acima da consciência coletiva ou individual, pode degenerar a democracia, transformando-a numa fonte de arbitrariedade. E não é exatamente isso que vemos hoje?



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